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O mundo é um moinho: as reverências ao talento e a lucidez do mestre Cartola

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O mundo é um moinho: as reverências ao talento e a lucidez do mestre Cartola

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O samba e o carnaval são o desafogo de quem vive em um mundo que gira de cabeça para baixo. Por mais que gritem e esperneiem, os seus inimigos (criaturas saudosas da ditadura e dos tempos da chibata e da Inquisição) jamais lograrão apagar essa chama que incendeia a alma do povo carioca e deitou raízes por cá já nos dias do Império, sucedendo o “violento e sujo entrudo lisboeta” – e que, desde então, não parou de pulsar no Rio de Janeiro. 

Dizem que o imperador D. Pedro II quis “civilizar” a bagunça, promovendo o desfile das grandes sociedades, luxuoso cortejo de carros alegóricos que José de Alencar enalteceu.

Só que a massa dos bestializados não tardou a “abrir alas” com seus ranchos e cordões, para não falar da pioneira Chiquinha Gonzaga, botando banca já em 1899. Depois, vieram os alegres blocos de rua, de humor crítico e escrachado, enquanto as classes mais “chiques” desfilavam de automóvel no corso dos almofadinhas. 

Resistindo à repressão policial no antigo Distrito Federal, o morro desceu para a Praça XI, sob a batuta de Cartola, Carlos Cachaça, Ismael Silva, Mano Elói, Paulo da Portela e outros bambas, seduzindo a cidade com a cadência do samba, decerto a maior expressão de resistência cultural de nossa gente. De um jeito ou de outro, a praça era do povo, como o céu seria do avião. 

Moinho de sonhos

Um dos ícones dessa história possui nome, sobrenome e apelido: é Angenor de Oliveira, o genial Cartola, para muitos o maior sambista que este país tão pródigo e desigual gerou. Nascido no bairro do Catete, em 1908, ele passou a infância em Laranjeiras, mas a falta de recursos obrigou sua família a mudar para o Morro da Mangueira em 1919.

Lá, o jovem, que já aprendera a tocar violão e cavaquinho com o pai, conheceu Carlos Cachaça, Babaú, Zé Espinguela e outros pares de responsa – a turma com a qual criou o lendário Bloco dos Arengueiros, origem da Estação Primeira de Mangueira, fundada em 1928. E tornou-se o poeta de uma “gente simples e pobre” que só se cobria de sol, mas não desistia de cantar.

A escola de pavilhão verde e rosa era um dos territórios nos quais o antigo batuque da senzala assumia sua nova feição urbana, bem mais melódica e sincopada.

A arte popular gestada pelos negros cariocas buscava se afirmar, lutando contra o feroz preconceito e perseguição do poder público na Primeira República. Por isso, o morro acolhia com frequência a visita de Paulo da Portela (parceiro de Mano Elói nas lutas sindicais do Cais do Porto), um dos maiores militantes e articuladores da causa negra, assim como as “embaixadas” da “Deixa Falar”, a agremiação pioneira dos bambas do Estácio.  

Cartola abraçou de corpo e alma o sonho real de fazer do samba a carteira de identidade de sua gente, até então escorraçada e autuada por “vadiagem”  pelo tenebroso “crime” de levar consigo um pandeiro ou um cavaquinho. A redenção viria a partir da década de 1930, com o reconhecimento das escolas pelo Prefeito Pereira Passos – mais precisamente em 1935  – e a projeção do gênero em meio à esfuziante “era do rádio”, em que Pixinguinha, Noel, Ataulfo, Ismael e companhia se convertem no retrato sonoro do Brasil. 

Contudo, se o samba pisava os palcos badalados dos teatros e das rádios, a maioria dos sambistas continuava a viver na pindaíba.

Nos anos 1930, ao lado de parceiros como Noel Rosa, que o visitava amiúde na Mangueira, Cartola escreveu para os grandes intérpretes da época. Em 1932, Carmen Miranda gravou “Tenho um Novo Amor” (de Cartola e Noel); em 1936, Aracy de Almeida cantou “Não Quero Mais” (parceria com Carlos Cachaça e Zé da Zilda), recriada por Paulinho da Viola em 1973. E Francisco Alves, em especial, cansou de se valer do poeta, pagando-lhes algumas merrecas para que ele compusesse pérolas que o público ouviria nas emissoras da cidade, como “Divina Dama” (1933).

O moinho da nascente indústria cultural haveria de triturar as ilusões do menestrel. Sem retorno financeiro, ele passou anos no ostracismo, sendo, inclusive, lavador de carros nas ruas da Zona Sul. O trampo pesado não era problema para Angenor, cujo apelido, aliás, surgira na juventude, na época em que era servente de obra e usava um chapéu coco para se proteger do cimento que lhe caía sobre a cabeça.

Após a tormenta, porém, o sol renasceu.

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Redescoberto pelo jornalista Sérgio Porto, Cartola retomou a carreira no “Zicartola”, bar montado com a fiel companheira Dona Zica, um marco da MPB na década de 1960.

Aberto no segundo piso de um sobrado da Rua da Carioca, no centro do Rio, em 1963, o restaurante logo se tornou um reduto efervescente de artistas e intelectuais da cidade. Além da saborosa comida e petiscos da cozinha dirigida por Dona Zica, a casa ficaria famosa por suas noitadas musicais, às quartas e sextas, sob a batuta de Hermínio Bello de Carvalho e do saudoso Zé Keti.

Cartola tornou-se o poeta de uma “gente simples e pobre” que só se cobria de sol, mas não desistia de cantar / Acervo da Biblioteca Nacional
Cartola tornou-se o poeta de uma “gente simples e pobre” que só se cobria de sol, mas não desistia de cantar / Acervo da Biblioteca Nacional

O local era um verdadeiro caldeirão do samba e da MPB. Ali se apresentava o próprio Cartola, após décadas de sumiço da cena musical, e a magistral Aracy de Almeida, acompanhada por Nelson Cavaquinho, outro baluarte da nação mangueirense. No singelo palco, estreou também o portelense Paulinho da Viola, tocando para o público as primeiras canções que o consagrariam como um dos ícones da arte popular. Contudo, por problemas administrativos, o bar fechou suas portas em 1965.

A lacuna do “Zicartola” veio a ser preenchida, de certa forma, pelas apresentações no “Cartola convida”, em 1970, no prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Flamengo, e pela “Noitada de Samba” do Teatro Opinião, uma ousada iniciativa da dupla Jorge Coutinho & Leonides Bayer.

Durante 12 anos, de 1971 a 1983, os encontros às segundas-feiras em Copacabana fizeram o público conhecer artistas que nem sempre tinham espaço nas gravadoras e no rádio. Com o talento inigualável que a vida e a poesia lhes dera, ali se reunia a nata do nosso samba, com Cartola, Nelson Cavaquinho, Candeia, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, João Nogueira, Clara Nunes e tantos outros.

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Emoção vertidas em verso e melodia

O reencontro com os palcos se deu em 1963, mas a entrada nos estúdios só acontece na década de 1970. O primeiro disco (“Cartola”) sai em 1974, numa arrojada iniciativa do pesquisador e publicitário Marcus Pereira, trazendo clássicos como “Acontece”, “Corra e olhe o céu” (com Dalmo Casteli), “O Sol Nascerá” (com Élton Medeiros) e “Quem me vê sorrindo” (com Carlos Cachaça).

Depois, vieram novas joias musicais, entre elas o lirismo irretocável de “As rosas não falam”, grande sucesso do LP gravado em 1976, e de “A vida é um moinho”, canção entoada pelos fãs em sua despedida no Cemitério do Caju, em 1980.

Mesmo tardia, a carreira nos estúdios permitiu que o público finalmente desfrutasse da ourivesaria artística do compositor. De fato, poucos músicos populares deste país igualam sua capacidade em mesclar imagens poéticas e recursos verbais adequados à expressão do eu-lírico em cada canção.

Há quem se admire, por exemplo, da constante opção por formas verbais restritas à modalidade escrita da língua, como o emprego da segunda pessoa do singular, em lugar da terceira (tão hegemônica entre os cariocas), mas não cabe aqui qualquer espanto, até porque ele se serviu das duas. Vale a pena ilustrar o fato com alguns versos do poeta:

Ainda é cedo, amor / Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

[…]

Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó

Na primeira estrofe de “O mundo é um moinho” (canção que, segundo alguns, teria sido composta para a filha rebelde que abandonava precocemente o lar), nada melhor que a segunda pessoa (“começaste”, “anuncias”, “irás tomar”) para traduzir a solenidade da advertência feita à pessoa amada. Um artifício, enfim, para distanciar-se da outra e fazê-la refletir sobre o ato impensado.

Contudo, quando a emoção fala mais alto e a iminência da perda se impõe, o autor utiliza a terceira pessoa (“Ouça-me bem”, “Preste atenção”), que traduz maior intimidade e carinho (sobretudo no imperativo, como atesta a velha cantiga gravada por Carmen e Caymmi: “Ai, ioiô / Tenha pena de mim…”).

Este traquejado professor de nossa melodiosa língua muitas vezes se indagou sobre o que teria sido de mim sem os versos de Angenor de Oliveira nas aulas que ministrei ao longo de quatro décadas.

Como não citar os achados magistrais de “As rosas não falam” (“Queixo-me às rosas / Mas que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti, ai”) aos alunos? Ou, ainda, as várias antíteses que ilustram a natureza dialética da vida, buscando o equilíbrio entre o ceticismo e a esperança, dois sentimentos que regem os corações humanos, como ele nos recorda em “O Sol Nascerá”: 

Finda a tempestade / O sol nascerá  
Finda esta saudade / Hei de ter outro alguém para amar

Grandeza da vida

Em suma, o que seduz este discípulo de Noel Rosa é a mescla de sentimento e filosofia das canções de Cartola. Elas nos ensinam a captar a grandeza da vida com todas as suas contradições, já que sofrimento e prazer são apenas duas faces da mesma moeda. Por isso, como não se curvar à sabedoria singela dos versos de “Acontece” (de Cartola e Élton), uma reedição em verde e rosa do velho mote da “fugacidade das cousas do mundo”?  

Esquece nosso amor, vê se esquece / Porque tudo no mundo acontece
E acontece que já não sei mais amar / Vai chorar, vai sofrer
E você não merece / Mas isso acontece

Após 112 anos de sua chegada ao planeta e quatro décadas de sua passagem, o povo do samba e os devotos da Academia prestam-lhe mais uma reverência, Mestre!

Afinal, reconhecer o talento e a lucidez dos artistas populares é algo sempre oportuno e urgente neste mundo redondo, levemente achatado nos polos e que ainda insiste em girar, em vez de capotar, como postulam os “negacionistas” a serviço da ordem ultraneoliberal.

Evoé, Baco! Axé, Cartola! O nosso samba, minha gente, é isso aí.

*Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Estudos Literários pela Universidad de La Habana. Coordenador do Acervo Universitário do Samba, ele é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e das biografias de Aluísio Machado, Zé Katimba e Rosa Magalhães.

Edição: Mariana Pitasse

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